sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A vida adaptou as fábulas

por LAIS CATTASSINI


“Era uma vez a Branca de Neve. Ela morava na casa da mãe dela e estava andando quando viu uma escada bem grande e caiu”, começa a contar Júlia Félix, de 3 anos. Enquanto narra a cena, a menina mistura personagens que conhece com fatos de sua própria vida. Como as histórias de Júlia, os contos infantis têm se adaptado à realidade das famílias modernas e capturado as características do cotidiano para conquistar as crianças da nova geração.

As modificações no mundo da fantasia são analisadas pelos psicanalistas Diana e Mário Corso no livro A Psicanálise na Terra do Nunca (R$ 75, Editora Penso). “O pai era uma figura de poder na família e sua importância foi decaindo. Ele se tornou um Homer Simpson”, explica Corso.

Além da decadência do papel do pai, divórcios, novos casamentos e uniões homoafetivas também colaboraram para modificar a ficção tradicional. “O seriado americano Modern Family, que tem famílias de todos as origens, é o que melhor representa essa família mutante”, diz Diana.

Se algumas figuras familiares ganharam novas personalidades, princesas e bruxas se tornaram mais modernas. “Shrek e Fiona, por exemplo, são heróis de contos de fada que traduzem os anseios das crianças. São personagens que têm defeitos e que nos representam”, afirma Diana.

Professora do Núcleo da Família e Comunidade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Ida Kublikowski diz que as crianças não abandonaram as histórias tradicionais. “As experiências vão mudando e passamos a contar as histórias de maneira diferente. Mas os contos de fada ainda são consumidos”, diz.

No caso de Júlia, as fábulas convivem pacificamente com a realidade. A menina fez questão de comemorar seu aniversário vestida de Bela Adormecida. Mas, em suas histórias, quem salva a princesa é um médico e não o caçador. “A fada era o médico e aí a dor passou”, explica, ao criar uma versão moderninha para o clássico Chapeuzinho Vermelho.

“As meninas ainda querem ser princesas. Basta pôr qualquer vestido mais comprido e elas já se sentem como as personagens”, afirma a professora e auxiliar de biblioteca Elizabeth Caravaggi. Ela é contadora de histórias e responsável por levar os contos clássicos aos alunos do Ensino Infantil do Colégio Marista Arquidiocesano de São Paulo. “A bruxa é outra figura que as crianças adoram”, aponta.

Associados mais ao humor e à magia do que à maldade, bruxos se tornaram favoritos. “Harry Potter é uma figura emblemática. Ele traduz essa importância da escola e a independência da criança”, analisa Diana. Harry também simboliza uma família desestruturada. Órfão, o bruxinho precisa enfrentar as próprias batalhas, uma característica muito apreciada pelas crianças.

“Na Antiguidade a criança não era valorizada. Ela não tinha espaço, até porque existia o medo de que morresse muito cedo. Hoje, o cenário mudou e a sociedade exige um preparo maior do jovem”, analisa Ida.

A fantasia, acreditam os especialistas, não é privilégio das crianças. “É um instrumento de elaboração. Fantasiar é uma das coisas que a gente mais faz”, afirma Diana. Para Corso, a ficção é parte importante do dia a dia. “É impossível viver sem a fantasia. Viver em um mundo sem poder escapar da realidade seria um inferno”.

Enquanto a ficção ajuda a construir o ser humano, a sociedade colabora para a formulação de novos contos. “Não arriscaria pensar em como será a ficção do futuro. É imprevisível porque o público escolhe o que gosta”, afirma Diana. “É um ‘interjogo’ entre ficção e realidade. Como dizem, quem conta um conto aumenta um ponto e, enquanto contamos de maneira diferente, as histórias estão sempre mudando”, analisa Ida.

Fonte: Jornal da Tarde  

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