Um músico em estado
puro. É assim que o colombiano Evélio Cabrejo-Parra, especialista em leitura na
primeira infância, define uma criança desde seu nascimento. Sensível à modulação
da voz, o recém-nascido se alimenta – desde o terceiro mês de gestação – da
linguagem, verdadeiro patrimônio cultural da humanidade.
Leia a seguir a entrevista concedida à revista Emília, em São
Paulo.
Gabriela Romeu
– No Brasil, ainda é muito novo falar em leitura na primeira
infância. As pessoas estão muito preocupadas com a alfabetização, mas não
necessariamente com a introdução das crianças no universo dos livros e da
literatura. Gostaria que o senhor explicasse um pouco a importância da leitura
na primeira infância, o diferencial que o acesso, o contato com livros e com a
leitura representam para a formação das crianças.
Evélio
Cabrejo-Parra – A importância da leitura na primeira infância
não deve responder unicamente à angústia escolar que sentem todos os pais: se as
crianças vão aprender a ler, se elas vão ter mais facilidade na hora de estudar
ou não... Essa é uma preocupação normal, naturalmente, e ser pai implica em se
fazer essas perguntas.
Porém, a leitura na primeira infância deve estar direcionada, eu diria mesmo,
colocada, entre as competências naturais da criança. A criança não é uma “tábua
rasa”, como se dizia antes. Chega ao mundo com muitas competências, competências
essas, sem dúvida, discretas, que você tem que observar para localizá-las. Eu
diria que há duas perguntas fundamentais atualmente: “Quais são as competências
naturais de um bebê?” e “Como podemos alimentar essas competências para
assegurar que esse bebê tenha um desenvolvimento normal?”.
GR –
Sim, mas sem ser algo excessivo...
EC-P –
Exato. Não se trata de querer garantir um futuro intelectual. Os bebês têm
necessidades psíquicas que devemos alimentar; da mesma maneira que se necessita
do alimento natural para crescer, é necessário também um alimento para crescer
psiquicamente. Essa é a função da leitura na primeira infância.
Para compreender quais são as competências naturais, a linguagem é uma
maneira interessante de começar, porque um bebê chega ao mundo com uma
capacidade de percepção auditiva muito, muito desenvolvida. O bebê ainda não
fala, mas escuta, escuta, escuta! É um músico em estado puro, então temos que
dar a ele algo musical e, precisamente, a voz humana é uma das primeiras coisas
que o bebê aprende a ler e a interpretar. O bebê é muito sensível à modulação da
voz, à música da voz. Por isso devemos falar muito com um bebê, como se ele
compreendesse, porque ele é muito sensível à musicalidade da voz, e começa a
juntar informações acústicas que vai armazenar em algum lugar e que mais tarde
irá reutilizar para emergir lentamente como sujeito enunciador.
A leitura entra nessa direção em contraposição à fala cotidiana. Temos que
dar ao bebê a possibilidade de escutar diversas músicas da língua. Porque a
língua tem uma grande diversidade de músicas; pensemos, por exemplo, nos
diferentes estilos por trás de cada escritor, em cada estilo há uma música
diferente, e o bebê é sensível a essa variação de musicalidade. Logo, podemos
ler poesia para os bebês, textos literários, devemos falar muito com eles,
fazê-los escutar música. O bebê não é como o adulto – já ligado e encadeado pelo
conteúdo semântico das palavras. O bebê, eu diria, vem ao mundo e precisa
satisfazer suas necessidades mimeticamente.
GR –
Então quer dizer que o bebê deve ter acesso a uma grande diversidade
musical. O senhor poderia precisar desde quando? Falar em primeira infância é um
tanto amplo. Estamos tratando dos primeiros meses de idade? Ainda na barriga da
mãe? É possível ler histórias para essa criança recém-nascida ou que ainda não
nasceu?
EC-P –
Sim, porque o sistema auditivo se constitui entre o terceiro e o quinto mês de
gestação. O feto começa já a tratar a informação e é sabido que a voz da mãe
chega a ele como uma ressonância particular. As batidas do coração também. Pode
parecer um pouco romântico, mas é assim! E o bebê armazena essa informação e a
utiliza ao nascer. Ele distingue a voz da mãe de todas as outras vozes que o
rodeiam.
Mas eu diria que o importante para a formação do bebê é saber que ele
necessita de tudo que é rítmico, pois isso é algo que vai facilitar o seu
crescimento psíquico, psicológico.
GR –
Como escolher essas músicas? Devem ser músicas de qualidade?
EC-P –
Não precisamos escolher muito. Toda língua tem um material específico destinado
precisamente a alimentar essas necessidades psicológicas do bebê. Refiro-me, por
exemplo, às cantigas de ninar, todas as línguas têm isso. Não há uma língua sem
isso! Trata-se do patrimônio antropológico contido nelas todas.
GR –
Cantar para um bebê faz parte de uma antiga tradição, passada de geração
para geração. Mas contar ou ler uma história para um bebê é algo novo. E essa
música que não é a da cantiga, mas é a do livro, essa variante é importante. O
senhor pode explicar um pouco a diferença, caso exista, para o desenvolvimento
da criança?
EC-P –
A diferença reside entre a musicalidade da língua na vida cotidiana e a
musicalidade de um texto ou de uma cantiga ou de uma canção de ninar. Por
exemplo, existe um livro no Brasil – Quem canta seus males espanta
[Caramelo] – que ilustra bem o que estamos dizendo. Nesse título, já há uma
musicalidade, uma espécie de poesia, uma sílaba que se repete. Depois, quando
você abre o livro, encontra: “o meu chapéu, o meu chapéu”. O balbuciar do bebê
está contido na língua. Todos nos construímos assim.
É por isso que essas cantigas tão simples fazem parte do patrimônio cultural
de uma nação. As avós cantaram para os netos, os pais para os filhos e assim por
gerações... É um patrimônio muito profundo, enraizado. Às vezes não lembramos,
mas, quando ouvimos alguém cantar, imediatamente nos identificamos. Temos que
dar isso às crianças porque é uma maneira de facilitar-lhes a entrada na língua.
Mas, sobretudo, uma entrada na cadeia simbólica onde ela nasce.
A língua existe antes de o bebê nascer. Ele nasce, chega, ganha um nome,
aprende a falar, vai embora – e a língua continua. É muito importante lembrar: o
ser humano pertence, entra, em uma cadeia simbólica. E essas músicas facilitam a
entrada na cadeia simbólica que faz parte do patrimônio simbólico das
comunidades. É uma marca. Há muitas culturas que marcam o rosto para dizer quem
pertence a elas. A língua também é uma marca. No momento em que a criança começa
a falar, diz de onde vem, mesmo que não o diga literalmente. É uma maneira de
identificação. A língua é um patrimônio, um patrimônio extraordinário.
A voz de uma mulher é diferente da voz de um homem, mas os movimentos que
eles fazem para pronunciar as palavras são os mesmos e as crianças têm de
aprender. Isso faz com que eles tenham que se identificar lentamente para
produzir uma música, que implica na incorporação de um conjunto de movimentos
necessários para produzi-la. E dentro dessa música estará contido um conjunto de
operações mentais que faz parte do patrimônio da língua, um patrimônio cultural,
simbólico, que é necessário apreender para fazer parte de uma comunidade.
Crescer é isso, constituir-se, como sujeito linguístico de uma comunidade. E
a língua é um berço inesgotável de música, um encontro infinito de palavras.
Mesmo que pudéssemos juntar todas as bibliotecas de São Paulo, do Brasil e de
Portugal, nunca encontraríamos todas as possibilidades musicais da língua. Daí o
caráter infinito do encontro de palavras. E cada encontro de palavras produz uma
música diferente. E por isso é maravilhoso que haja muita literatura.
São inesgotáveis as possibilidades de leituras que podem ser feitas e nunca
se lerá suficientemente para um bebê. É importante estar consciente disso. Não
se trata de favorecer o conhecimento futuro das crianças, é uma necessidade. As
crianças são capazes de introjetar e interiorizar para incorporar ritmos e,
precisamente, os adultos têm que saber que isso faz parte do alimento simbólico,
necessário para a construção psicológica das crianças. Por isso, a importância
de dar-lhes ritmos de formas muito diferentes.
Por exemplo, as mães não podem ficar o tempo todo com seus bebês, de noite
colocam-no no berço, e pela manhã reaparecem; todos os dias a mesma coisa, isso
tem um ritmo que pode ser marcado pela voz, pelos carinhos... Todos são
parâmetros que, finalmente, condensam-se em uma espécie de música cultural –
familiar. O bebê aprende isso. E uma vez que acontece, começa a organizar suas
relações com os outros em função desse ritmo. Ele sabe que a mãe vai vir. São
duas operações muito complexas que todos os bebês têm que realizar em algum
momento no interior de si mesmo: dar-se conta que, mesmo que a mamãe não esteja
lá, ela está em outro lugar; e que ela vai chegar. Sem essas operações, ele
ficaria louco, angustiado. E o bebê faz isso porque há um ritmo, porque ela já
foi e já voltou. É por isso que coisas tão simples, como o jogo do “esconde e
aparece”, por exemplo, em que a presença e a ausência se confundem quase em uma
simultaneidade temporária, é uma maneira de advertir-lhe culturalmente que um
dia ela poderá estar mais distante, mais distante, mais distante – e que talvez
um dia ele não a veja mais.
GR –
Gostaria de fazer outra pergunta. O senhor foi aluno do Piaget. Queria saber
como foi essa experiência. Como foi esse período?
EC-P –
Eu trabalhei com um sujeito que se chamava François Bresson, que era muito amigo
de Piaget e o conhecia muito bem. Na época, existia o Centro de Epistemologia
Genética de Genebra, que dava muita importância, como Piaget fazia, ao
desenvolvimento cognitivo da criança. As etapas de desenvolvimento e tudo mais.
Porém Piaget sofreu para integrar a linguagem. Ele dizia que quando a linguagem
chegava, era uma espécie de evolução “copérnica”. Sofreu bastante porque na
época era necessário distinguir linguagem de língua. A língua é o inglês, o
francês, o espanhol, mas a linguagem é uma faculdade específica do ser humano
que está enraizada em estruturas biológicas e que já está presente no
nascimento. Pode-se dizer que se aprende a língua, mas não se aprende a
linguagem. O bebê já vem armado com a faculdade de linguagem que vai lhe
permitir aprender as línguas. E é por isso que os processos de construção de
significado estão ligados à linguagem. Pode-se também dizer que a criança
constrói o significado desde o nascimento, pela entonação da voz. A faculdade de
linguagem poderia ser definida como essa capacidade natural do ser humano em
receber a informação que vem do outro, fazer um tratamento mental e enviar um
“eco”. O bebê olha e dá sinais de que algo acontece. É assim que se constrói o
sorriso. O adulto sorri para o bebê e o bebê sorri. O bebê vê alguém que não
conhece ‑ que nunca viu antes‑ ele olha pra ele e estranha. O bebê tem uma
representação clara do rosto da mãe ou de uma pessoa familiar que ele não
confunde com os demais. A faculdade de linguagem é essa capacidade que o ser
humano tem de analisar e receber informação, tratá-la e dar-lhe significado.
Isso existe desde o nascimento.
Piaget teve dificuldade de integrar isso. Mas Piaget nos ensinou coisas
maravilhosas, como a observação. Participei com ele de seminários, em grupos de
trabalho. Era um homem extraordinário, ele explicava tudo pelo conceito de
acumulação e assimilação. Foi do campo do biológico para o da psicologia. Se deu
conta de que o organismo tem de assimilar e que todos os processos de acumulação
estão também presentes no corpo. Piaget era um homem que escrevia muito, sempre
com base em suas observações. Foi alguém que amou o desenvolvimento cognitivo do
bebê.
Com o tempo me dei conta de que alguns conceitos, possivelmente, poderiam ser
interpretados de outra maneira, como o de “permanência”, a percepção de que o
objeto continua existindo mesmo quando não se vê. Piaget insistiu muito sobre o
objeto psíquico, físico. Eu penso que a primeira permanência psíquica, mental, é
o objeto humano, e não o físico.
O bebê tem que mostrar, construir a presença da mãe, alguém que está aí, que
ele sabe que, quando está ausente, está em algum lugar, mas que virá. Creio que
é esse esquema mental que ele depois pode transferir para os objetos. E isso
acontece rápido. Se o bebê não pudesse fazer essa operação, seria, como já
dissemos, muito angustiante para ele. Então se cria um jogo entre presença,
ausência e, lentamente, um convoca o outro pelo pensamento. E o bebê tem que
fazer essa operação rapidamente. Isso pode ser possível também se a mãe pensa no
bebê. Quando ela leva o bebê para a creche e não se esquece de ir buscá-lo, não
o abandona mentalmente. Ela pensa nisso todos os dias, mesmo quando está longe.
É uma maneira de não abandoná-lo. Essas coisas, que parecem um pouco românticas,
são importantes para que o bebê também possa construir esses processos de jogar
com a ausência e a presença. O bebê pode convocar o outro, mesmo se está
ausente. Então se cria, eu diria, uma espécie de companheiro simbólico-psíquico,
que mesmo estando ausente eu carrego de toda maneira. E isso é como começa a se
criar a autonomia psíquica. É dizer que eu crio substitutos para que não esteja
completamente só.
Por isso, a permanência para mim se dá primeiro pela construção do objeto
humano. Penso que se não se faz isso, a permanência dos outros objetos não é
possível. É uma transferência mental. O primeiro objeto permanente que se
constrói é a permanência de um objeto ao qual alguém está ligado emocionalmente
e sabe que ele continua existindo mesmo quando não pode vê-lo.
GR –
E por isso é fundamental que a triangulação – mediador, criança e
objeto-livro – venha da família. Se isso acontece a partir da família, o
resultado é totalmente diferente.
EC-P –
Acredito que a família tem um papel muito importante. Penso sempre em três
aliados, na ordem natural: o bebê, a família e a biblioteca. Na ordem
institucional: a biblioteca, a família e o bebê. A família é decisiva nessa
história. E quando descobre que o bebê gosta de livros, nenhum pai, nenhuma mãe
permanece indiferente a isso. Vai descobrir que o bebê tem uma série de
competências, pondo em movimento todo esse patrimônio cultural que, como adulto,
aparentemente esqueceu, mas está latente, lá em um canto de uma parte não
consciente. Nas cantigas de ninar, nas canções, lá está tudo que precisa ser
oferecido aos bebês.
Nesse processo há uma riqueza que vai para além da simples interação. Todo
adulto leva em si um bebê, a parte infantil do adulto que muitas vezes dorme, e
precisa despertar. Às vezes, pode estar morta e então acaba criando uma
descontinuidade interna entre a parte adulta e a infantil. É fundamental
despertar a parte infantil do adulto, vale a pena colocá-la em movimento, e, às
vezes, lendo para um bebê, na verdade se está lendo para o bebê que uma vez se
foi. Isso provoca um grande prazer porque há este encontro. E isso é de fato
importante. É como dizer que o bebê vai dar vida ao bebê do adulto, em uma
troca.
Fonte: Revista Emilia
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